Tradução da obra de um dos maiores nomes da narrativa francesa do século XVIII, Claude Crébillon, por Ana Alexandra Seabra de Carvalho.
Claude Crébillon é um autor rendido ao prazer da escrita e que convida o leitor a pôr à prova os seus dotes interpretativos. Em A Noite e o Momento, romance-diálogo dado à estampa em 1755, são colocadas em cena duas personagens exímias no jogo do desejo da nova Arte de Amar da galanteria aristocrática coeva. A sedução é mútua e opera-se pela linguagem elegante e conveniente que permite evitar os termos mais crus da relação erótica, cobrindo-os com o véu da delicadeza da expressão do sentimento amoroso. Toda a metafísica terna é aqui traduzível na materialidade do desejo partilhado e satisfeito. Apesar da linguagem da paixão, o jogador masculino defende claramente uma nova moral, fundada no hedonismo, para a qual finge converter a sua parceira. O Amor-jogo (amour-goût, nos termos do autor) corresponde a uma conceção que defende a busca do prazer a dois como valor supremo, livre de compromissos e de preconceitos, no hic et nunc do Momento, adotando a máxima horaciana do carpe diem (ou melhor, neste texto, da Noite). O desejo procura a sua satisfação em liberdade, pelo menos no caso masculino. As convenções sociais são ainda muito rígidas e especialmente severas para com a mulher, o que obriga a todo o cerimonial galante (linguístico e comportamental) do respeito masculino e da resistência feminina, coreografia de uma paixão mútua nem sempre existente, de que o pas de deux a que aqui assistimos é um brilhante exemplo.
Por outro lado, é de salientar a grande originalidade de Claude Crébillon relativa- mente ao jogo que se trava, “ao lado” das personagens, entre a instância autoral, representada por um narrador de 1.º nível, e o leitor por ela interpelado. Trata-se aqui de uma forma mista, conjugando diegese e mimese, que joga com elementos narrativos, como os comentários distanciados de uma espécie de voz-off, combinados com uma utilização da fórmula dramática de anteposição do nome dos interlocutores às respetivas falas. A palavra deixa de estar inteiramente confiada às persona- gens, pois uma voz exterior vem imiscuir-se e não se satisfaz com meras indicações cénicas: ela interpela ostensivamente o leitor, comentando os discursos das perso- nagens. O jogo irónico da estética do contraponto característica da escrita de Claude Crébillon escolhe este processo das intrusões autorais para sublinhar, não se comprometendo, a contradição entre as palavras e os atos das personagens, instaurando uma dupla enunciação em que as intervenções do narrador de 1.º nível, destacadas em itálico, pontuam as palavras dos dois interlocutores de forma breve, mas frequente, e cuja funcionalidade é da maior relevância.
Convidamos, pois, o leitor a deliciar-se com este texto setecentista, publicado numa edição bilingue.