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Jogo Tardio

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978-989-8377-04-3
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Quando o jogar se cruza com o ser jogado, num movimento em que persiste o enigmático, a reflexão permite fazer mapas de percursos mas não possibilita determinar qualquer destino. A este chegamos, constantemente, pelo inexorável jogo do acaso. As personagens de Jogo Tardio balanceiam no jogo da vida, falam de si, do mundo e deles no mundo, mas falam sobretudo da razão de tudo isso. Os capítulos deste livro organizam tematicamente uma série de questões que são transportadas para a narrativa através das vivências das personagens: Ângelo e Beatriz conhecem-se em Macau e depois voltam para Portugal; Helder e Ana, marido e mulher combatem pela cumplicidade que não querem perder; Amanda, mulher encantadora, trabalhadora, independente, que não se deixa desgastar pelas tiranias da persuasão; Dora, uma adolescente que já fala numa linguagem quase incompreensível para a geração que a educa. Tudo isso a passar-se entre a multifacetada região do Grande Porto e os anos derradeiros da última bandeira do império português. Tudo misturando uma inquietude persistente com o fascínio de um olhar interrogativo perpassado por uma irredimível perplexidade.

Rui Grácio
Apresentação de «Jogo tardio» de Manuel Ralha
Clube Literário do Porto, 15 de Julho de 2010

Uma das características desta obra — que, sendo o segundo livro de ficção de Manuel Ralha me começa a surgir como um traço do estilo de escrita do autor (relembro que publicou antes, em 2007, A condição do desejo) — é a adopção daquilo a que poderíamos chamar um registo argumentativo.
Este registo é encarnado quer por conversas, trocas de impressões e discussões que aparecem recorrentemente entre as personagens, quer pela forma como estas cogitam consigo mesmas. Tal registo não é, por outro lado, dissociável da trama literária engendrada pelo autor se pautar por uma arquitectura fortemente filosófica, ou seja, na qual a questão do sentido da existência e da vida funciona como pano de fundo.
Este registo argumentativo a que aludi está bem patente, por exemplo, na primeira epígrafe do livro, que nos apresenta uma afirmação de Wittgenstein: «O genuíno mérito de Copérnico ou de Darwin não foi a descoberta de uma teoria verdadeira, mas de um novo e fértil ponto de vista».
A ideia de que tudo é uma questão de perspectiva é aliás retomada, já quase no fim do livro, quando nos é apresentada, numa reflexão de uma das personagens, a seguinte passagem: «A realidade! O ser humano. Na segunda ou terceira vez que visitei Wang, na sua exposição, comecei a aperceber-me que ele nunca dizia ‘a realidade’ mas sim ‘uma realidade’. Só muito mais tarde é que me pareceu entender o que ele queria dizer» (p. 198).
Esta noção de perspectivismo enforma também parte do perfil das principais personagens deste livro, que se caracterizam por reflectirem tomando vários pontos de vista em consideração, ou seja, por chegarem aos seus posicionamentos envolvendo-se em discursos e contra-discursos.
Ora, se este aspecto permite dizer que a literatura de Manuel Ralha o mostra como um homem de pensamento e detentor de uma concepção de pensamento como uma arte de «bricolage», de uma imagem de pensamento como movimento através de caminhos por entre redes de constructos criativamente maleáveis, devo também acrescentar que a sua escrita o revela também como um amante da observação do humano nas suas minudências mais insuspeitas e, simultaneamente, um analista fascinado pelas dinâmicas da vida e pela dimensão de contingência que as atravessa.
A metáfora que mais se adequa a este dinamismo em que os nexos e a contingência se misturam em formas de vida nas quais o enigma teima em persistir é a metáfora do jogo e a escolha desta palavra para o título da obra reflecte precisamente esta abordagem.
Pelo conteúdo do livro, que alterna geograficamente entre dois locais marcados por linguagens e culturas muito diferentes — (Portugal com a língua portuguesa e Macau com o cantonês), poderíamos dizer que há uma relação directa entre os modos de ser, de ver e de viver das pessoas e os jogos de linguagem que habitam. Vai nesse sentido a segunda epígrafe do livro, atribuída a Confúcio: «Sem entender as palavras não é possível entender os homens».
Mas a metáfora do jogo tem, no âmbito do título deste livro, um alcance ainda maior, sendo passível de ser lida segundo dois eixos. Vejamos quais são.
Há um cliché futebolístico que diz que «prognósticos, só no fim do jogo». Trata-se, obviamente de um paradoxo e a valia dos paradoxos é a de despertarem o pensamento. Neste caso, ele serve para evidenciar a incomensurabilidade entre, por um lado, uma compreensão retrospectiva que, estando já na posse de todos os elementos da narrativa, se presta a produzir uma explicação teleológica e a enquadrar o sentido entre uma origem e um fim e, por outro lado, uma compreensão vivida como processo e não como produto que, tendo uma origem situada e circunstanciada, permanece em aberto quanto às contas finais a fazer. Ora a vida é uma narrativa cujo os acontecimentos fazem parte de uma história cujo fim desconhecemos e a compreensão teleológica do seu sentido é sempre tardia. Resta contudo a possibilidade de se lerem e interpretarem os sinais dos tempos. E esta é também uma das vertentes deste livro.
Ora, deste ponto de vista, é-nos apresentado o diagnóstico de que todas as narrativas se parecem ter exaurido e a realidade, enfermada na sua própria tautologia, parece ter-se tornado num jogo tardio. Vive-se sob a sensação opressiva de que «agora é tarde» e sob o espectro de fim de ciclo.
Como escreve o autor a dada passo, «de concreto há este jogo tardio em que existimos, esta fase avançada e derradeira do jogo da sociedade da concorrência, tal como o temos jogado. Porque, neste tipo de competição, já todos os jogos foram jogados. (…). Jogo tardio! Os sinais estão por todo o lado. Poucos recursos restam ao planeta para exaurir com plenas vantagens… Já não há problemas nacionais: todas as questões transcendem os países. As soluções parciais tornaram-se irrisórias. Não se arremessam senão bumerangues. Não há projéctil sem ricochete. Isto nada tem de patético ou catastrófico. Só a história assinalará este desfecho claramente. Para nós que o vivemos, o jogo tardio, tal como os seus precedentes, é uma transformação constante, com mais ou menos abalos, porventura imperceptível para muitos» (p. 197-198).

Talvez não seja aliás despropositado referir que, num blog que o autor mantém há alguns anos (http://mnemosyne.blog-city.com), encontramos no lado direito do ecrã uma animação que evoca a condição de Sísifo: está este confinado a uma só tarefa e repete-a ciclicamente. A analogia insinua-se, pois, relativamente à questão do sentido da vida e poderíamos dizer que nos nossos dias parece ser nesta circularidade que se vai cumprindo a existência, agora acompanhada pela sensação de sufoco, como se no xadrez da vida o preenchimento de todas as casas tornasse inviável qualquer novo lance e o jogo se asfixiasse a si mesmo.
Se, convocando a referência de Sísifo, falo da questão do sentido da vida, é porque ela é colocada de forma implícita no título deste livro e, de uma forma explícita e recorrente, em algumas das suas passagens.
Feito, pois, este enquadramento geral em torno do título da obra e do seu possível alcance, mergulhemos agora na sua arquitectónica.
Em primeiro lugar, a construção de cada um dos 11 capítulos que compõem o livro é precedido por uma data e um local. Os locais oscilam entre o grande Porto e Macau (que em 20 de Dezembro de 1999 deixou de ser a última colónia europeia na China). As datas, entre Outubro de 1994 (mas note-se que esta é a data do último capítulo) e Junho de 2005.
Temos assim as narrativas dos diferentes capítulos balizadas num período de dez anos no qual nos são desvendados percursos da vida dos personagens e as transformações do mundo em que vivem.
Assinale-se que é neste período que se dá a explosão da internet e que se torna recorrente o tema da chamada globalização. Se quiséssemos recorrer, fazendo um pequeno parêntesis, à caracterização com que muitos pensadores se referiram a esta época, expressões como
«sociedade da comunicação generalizada» | «sociedade em rede» | «desterritorialização do espaço» | «acentramento do tempo» |«tempo de economia-mundo» | «mercado global» | «fim das grandes narrativas» | «sociedade de meios sem fins» | «vertigem do tempo acelerado» | «mobilização total» | «mobilização infinita» | «o deserto do real» | «adeus ao corpo» | «advento do pós-orgânico» | «advento do trans-humano» | «cultura cyberespacial»
dizíamos, expressões como estas, são utilizadas como diagnóstico dos tempos que correm.
Outros autores falam de «fascismo pós-moderno» e de «Estado de guerra» para se referirem ao triunfo do capitalismo e à mercantilização da vida.
Neste livro, embora haja muitas ressonâncias deste tipo de frases, a opção do autor vai para a tirania da persuasão como forma de designar a omnipresença dessa força que invade e asfixia actualmente a vida. A alergia a este mundo da persuasão é aliás uma das inquietações que assola uma das principais personagens deste livro, Hélder Ramos.
Mas voltemos à arquitectónica do livro. Os seus capítulos, todos eles contextualizados por datas e situações concretas, são contudo intitulados com conceitos ou, se preferirmos, com palavras que indicam temas carregados de uma dimensão filosófica. Vejamos, pois, como se dá esta articulação.

1. O primeiro capítulo intitula-se: Susceptibilidade (Porto, Junho 2005)
É certo que a susceptibilidade de que o autor nos fala neste capítulo é personificada por Hélder Ramos que, como referi já, é uma das personagens deste livro. Mas ela pode ser facilmente reconhecível como um fenómeno dos dias de hoje: trata-se da omnipresença da comunicação persuasiva, sentida por Hélder como uma tirania da persuasão, dado a sua invasividade, a permanente mobilização que faz das nossas percepções a constante di-versão que provoca. Encontramos a personagem refugiada no Parque da cidade do Porto, procurando não a liberdade, mas a libertação de toda essa subjugação que remete para um estado de constante exterioridade e impede de meditar, de pensar sobre si próprio e sobre a sua condição. Este estado de um certo tormento relativamente à exposição aos mecanismos da persuasão social, à sociedade hipercompetitiva, espelho da mercantalização dos modos de vida, faz aliás parte da caracterização desta personagem, que depois de virar os quarenta anos começa a padecer desta inquietação anteriormente inexistente. «Seria isso amadurecer? Envelhecer» — pensa a dada altura para consigo próprio.
A susceptibilidade de Hélder relativamente à perversidade da persuasão é também correlativa de mecanismos de resistência e de defesa e, no seu limite, a questão que se lhe coloca é a da liberdade e a do equilíbrio.
Neste capítulo ficamos também conhecer outras personagens: Ana, esposa de Hélder, Beatriz, professora e amiga de Ana, Dora, filha do casal e da geração WWW e Ângelo Martins companheiro de Beatriz e que será outras das personagens principais desta ficção.

2. O segundo capítulo intitula-se: Contexto (Macau, Fevereiro 1995)
Sob o título de «contexto» o livro desloca-nos para um mundo diferente, Macau, essencialmente marcado pela língua e pela sua cultura. Mas também por ser uma espécie de Las Vegas do Oriente, onde o jogo fervilha. Ângelo Martins foi para aí deslocado por questões profissionais e o choque de culturas Ocidente/Oriente é-nos apresentado pelos seus olhos e pensamentos. Porque, com efeito, a estranheza do local torna propício reflectir também sobre nós mesmos. Ao contrário de Hélder, Ângelo, embora inconformista, é um espírito mais pacificado e parece sempre manter uma razoável distância contemplativa face ao que se passa à sua volta. Gosta de perceber a valia das rotinas e de as utilizar como forma de criar espaço para desenvolver actividades criativas. Tem apetência pelo jogo, mas é controlado na sua prática que, todavia, não deixa de lhe exercer algum fascínio.

3. O terceiro capítulo intitula-se: Metodologia (Porto, Junho 2005)
Neste capítulo, e sob o signo da contingência assinalada pelo achado de um livro («A pedra de Rhea») num banco do jardim (inserido da prática do bookcrossing e que, não por acaso, será retomado no capítulo nono), reencontramos Hélder e os seus pensamentos acerca das atitudes sobre o sentido da vida e sobre as convicções que sobre ela se estabelecem. Por um lado a atitude dos que têm convicções essencialistas, sejam elas de ordem filosófica ou religiosa e, por outro, como é o caso de Hélder, os que praticam o cepticismo como forma de resistência e cuja abordagem da realidade se faz através da vigilância, da negação do óbvio e da colecção de um conjunto de armas de arremesso, correlativo do gosto pela refutação. A metodologia aponta aqui não para pactuar com a realidade, mas com o enfrentá-la.
O tema da metodologia liga-se também, em certa medida, ao da educação e da cultura, indissociáveis na orgânica das sociedades. A crítica à educação como adestramento para a produção surge aqui pela boca Ângelo, durante um almoço entre casais, no qual é também referida a americanização dos espíritos através do cinema como nova forma de colonização. Este tema será retomado no capítulo seguinte.

4. O quarto capítulo intitula-se: Instabilidade (Macau, Agosto de 1995)
A instabilidade, tal como é tematizada neste capítulo, combina o conceito em termos de ordem e de harmonia do mundo com o de equilíbrio o pessoal. Aliás, ambos não só não estão desligados, como desembocam necessariamente no tema do bem e do mal (cf. p. 46). O tema vai também à questão da natureza humana e à vida em sociedade. Mas há também uma cena de instabilidade atmosférica (a passagem de um tufão) ligada a um momento de instabilidade emocional de Ângelo e às atitudes e pensamentos que este desenvolve para se apaziguar.

5. O quinto capítulo intitula-se: Relacionamento (Porto, Junho 2005)
O tema do relacionamento conduz-nos às tecituras da vida afectiva. A temática do relacionamento é propícia a recordações e à recapitulação dos percursos de vida em termos de encontro e desencontro. Constitui também um bom momento para uma caracterização das pessoas em termos de perfil psicológico. Neste capítulo narra-se o encontro de Ângelo e de Beatriz e fala-se das afinidades e dos ajustamentos solicitados pelos relacionamentos. Mas também da sua dependência do acaso. Ficamos a saber que Beatriz, divorciada em 1995, teria nessa altura o seu filho João um ano, é professora e, entre 1996 e 1999 lecciona em Macau. Ângelo, por seu turno, está em Macau, entre 1995 e 1999, em trabalho para a sua empresa. Conhecem-se em 1998 e têm, durante cerca de um ano, uma relação intensa mas descomprometida. As suas vidas divergem durante uns anos para, só em 2002, o acaso proporcionar o reencontro. Passam a viver juntos, num esquema peculiar, e pensam até no casamento. Assinalam-se cumplicidades e registam-se intimidades. Ficamos a saber também que convivem regularmente com Ana, colega de escola de Beatriz, e com Hélder. Essa convivência dá-nos uma imagem da sociabilidade destes casais. Retoma-se, numa das refeições conjuntas, o assunto do cinema, agora prolongado com o tema da imagem (cf. p. 67).

6. O sexto capítulo intitula-se: Historicidade (Macau, Março 1996)
A temática da historicidade é indissociável de uma reflexão sobre o tempo. Faz-nos pensar em legados e na nossa situação. Grande parte das reflexões a que assistimos neste capítulo tem como cenário a fachada da Igreja Madre de Deus, conhecida por Ruínas de são Paulo, ex-líbris de Macau. São as reflexões de Ângelo que aqui conduzem os leitores. Retomam-se as incomensurabilidades culturais e a questão da colonização. Cito apenas uma passagem: «E, de repente, ao pensar naquelas expressões estrambóticas do Lopes – «capitulação vergonhosa» –, fez-se como que um clarão no pensamento de Ângelo e o seu sentimento de desconforto defronte das Ruínas de S. Paulo racionalizou-se com limpidez. Aquela obra arquitectónica, naquele ponto do globo, contendo inspirações de variadas culturas, mas revelando a sua manifesta matriz europeia veiculada pelos destinos dos portugueses, sugeria, em boa verdade, as ruínas do passado, do império, da majestade arruinada pela inexorabilidade da história. O símbolo de Macau aparecia assim a Ângelo como uma sinistra alegoria do império português, localizada rigorosamente no seu derradeiro baluarte. Ou seja, uma relíquia desfigurada com severidade, frontaria sem edifício, fronte deslavada e estropiada do corpo, rosto sem alma». Neste capítulo é também introduzida uma nova figura, Xiu, uma profissional que trabalha no casino Zhujiang, perante aos convites da qual Ângelo cede, alimentando assim as suas necessidades sexuais e as suas fantasias relativamente ao corpo de uma asiática. Os pormenores estão no livro e fazem parte das muitas narrativas que constituem a narrativa principal.

7. O sétimo capítulo intitula-se: Reciprocidade (Porto Junho 2005)
Neste capítulo é introduzida mais uma personagem: Amanda. É-nos também apresentada uma situação de envolvimento e de romance entre esta nova personagem e o nosso já conhecido e Hélder Ramos. A situação da infidelidade surge, portanto, aparecendo a questão da reciprocidade como a questão da questão da infidelidade. É com ela que vemos Hélder a confrontar-se. Mas como a narrativa é feita de movimento e personagens, podemos saborear a maneira como são descritos os seus encontros, as conversas que têm e o evoluir do relacionamento. Por outro lado, ou não fosse Hélder Ramos um dos protagonistas desta novela, o tema da persuasão é de novo convocado, sendo desta vez discutido com Amanda, pessoa que não se sente grandemente incomodada com o fenómeno e que opta por visões mais despreocupadamente pragmáticas. Saberemos do desfecho deste relacionamento apenas no capítulo nono, e pergunto-me se o título que a este é atribuído «transcendência» não tem uma boa dose de ironia, no mesmo sentido em que Nietzsche falou do «humano, demasiado humano». Aliás, o uso da ironia e do humor refinado é uma das características do escritor deste livro.

8. O oitavo capítulo intitula-se: Sentimento (Macau Fevereiro 1998)
Neste capítulo a trama organiza-se em torno dos afectos de Ângelo. Sente a falta de Xiu, que desapareceu misteriosamente, deixando-lhe uma sensação de vazio. Esta falta não deixa de ser associada à compensação do jogo. Mas o jogo não substituiu a carência. Presumiremos mais tarde sobre o destino de Xiu. A narrativa passa também por um encontro com Eva, no Porto, num período de férias — mais uma vez o acaso. Com esta ex-namorada tinha tido uma relação íntima durante mais de cinco anos, terminada quando ela resolveu começar uma relação com outra pessoa. Conversam no café e Eva revela parecer agora conciliar a rebeldia de sempre com um boa dose de cinismo realista quando fala de trabalho. Cito: « – É tal e qual como te digo. Eu não recomendo o trabalho a ninguém. É a forma mais rápida de corromper uma pessoa. Os nossos pais, a escola, a universidade, têm uma canseira imensa para nos incutir uma forma de pensar que não tem qualquer aplicação no mundo do trabalho. Os valores que se fartaram de apregoar não existem nos negócios, nas estratégias de gestão. E o maior drama é que as empresas, incansavelmente, vão-nos reciclando de tal maneira que acabamos por absorver e assimilar a cultura do trabalho a ponto de passarmos a usá-la também fora dele. Quando eu estava na livraria dizia sempre para mim própria que a sujeição e hipocrisia era uma contingência do atendimento ao cliente, da história de «o cliente tem sempre razão». Pensava eu que noutro tipo de trabalho seria muito diferente. Pois estava redondamente enganada. O cliente está em todo o lado!». Neste capítulo o choque de culturas é também abordado do prisma do choque entre maneiras de sentir e por inevitáveis considerações sobre a complexidade e a dificuldade de compreender a natureza das emoções humanas. É também neste capítulo que se dá a memorável visita de Ângelo à exposição do calígrafo Wang Fan e que o tema da linguagem e do pensamento volta a ser central. Não posso evitar de citar uma breve passagem deste episódio: « – Podemos dizer que se trata de meditação?… – Perguntou ainda Ângelo, fascinado. – Oh, não! – Exclamou Wang, descontraído. E sorrindo, parecendo divertido, continuou: – Não, de maneira nenhuma. Porque em língua inglesa, na terminologia em que me exprimi, o significado para a palavra meditação já não existe. Extinguiu-se. Perdeu totalmente o sentido… por exaustão».

9. O nono capítulo intitula-se: Transcendência (Porto, Junho 2006)
Neste capítulo é-nos revelado em que circunstâncias Amanda foi enviada para a Dinamarca, sede da empresa em cuja filial portuguesa, tal com Hélder, Amanda trabalhava. Retoma-se também o tema da sociedade de persuasão, desta vez precisando as convergências e as divergências dos modos de pensar que sobre ele o engenheiro Hélder e o economista Ângelo têm. Mas a problemática da transcendência é aqui abordada pela retoma da narrativa acerca do tal livro que Hélder tinha encontrado no parque da cidade. Arriscaria a interpretar, muito abreviadamente, que o tema da transcendência é colocado em termos dos caminhos que percorrermos repetidamente pelo desdobramento de nós mesmos. Que a transcendência é, afinal o próprio caminhar. Aquilo que, como Sísifo, nos impele na repetição do mesmo movimento e da mesma tarefa, como prisioneiros duma interrogatividade para a qual as respostas e as conclusões ficam sempre aquém de uma apreensão teológica do sentido. Em suma, o ter de lidar com a contingência da certeza como medida ficcional da própria vida. O eterno paradoxo de explicar o inexplicável. A constante tensão do inalcançável.

10. O décimo capítulo intitula-se: Replicação (Porto, Junho 2006)
Neste capítulo é introduzida, no âmbito da teoria da evolução, a conjectura dos «memes», termo que fusiona as palavras «gene» e «memória». A referência a esta teoria não é sem relação com a temática da sociedade de persuasão ou, de um modo mais abrangente, com os processos de metamorfose, de selecção e de persistência dos padrões culturais. A replicação difere da reprodução porque surge como um sistema autónomo relativamente ao humano mas que o utiliza como suporte, fornecendo-lhe aquilo que poderíamos designar como de «software cultural», gerado essencialmente como efeito de comunicação. Obviamente tudo isto dá que pensar quanto à ideia de liberdade, tema que é retomado nas conversas entre Hélder e Ângelo. E também, a esta luz, a própria internet merece reflexão, inserida na questão do real e do virtual, mas muitos outros temas são sintetizados neste intenso capítulo.

11. O décimo-primeiro capítulo intitula-se: Destino (Porto, Outubro 1994!)
A chave, segundo o esquema teleológico do sentido, só se conhece verdadeiramente no fim, quando a narrativa se torna delimitada por uma origem e por um final. Quando nos julgamos detentores da chave, tendemos a ver a vida como destino. Voltamos assim ao paradoxo inicialmente referido: o autor dá-nos o prognóstico no fim do livro e, sendo assim, ele funciona como explicação, como ligação que une os elos de uma cadeia. E ficamos a perceber — uma vez mais o acaso e a contingência — que o destino pode ter, na sua origem, a face que se mostrará depois de imobilizada a moeda que se lançou ao ar.

Se consegui deixar-vos curioso com esta última tirada, e se o acicatar da curiosidade é uma boa estratégia de persuasão, então aproveito para vos recomendar vivamente a leitura desta obra.
Mas, antes de concluir, deixem-me apenas partilhar convosco uma informação: o Estudo Opus 25, No 11, composto por Chopin em 1836, é conhecido sob a designação «O vento de Inverno» e, segundo parece, visa desenvolver as capacidades do vigor, da destreza e da técnica do concertista. Dizem os entendidos que este estudo é o sucessor de um outro, o Opus 10, No 12, conhecido como o estudo «Revolucionário». Se durante o livro várias vezes são feitas subtis referências a músicas — deixando indiciar que este é um espaço de pensamento-vida que o autor privilegia e cuja fruição é um modo de se manter em forma no seu «jogo solitário» —, é justamente a abertura da citada peça de Chopin que o autor escolheu para encerrar o livro. Ao leitor caberá interpretar este final.
Quanto a mim, finalizarei dizendo que as razões pessoais pelas quais recomendo vivamente este livro são simples: considero estarmos perante uma trama magistralmente urdida em termos de inteligência arquitectónica, arrebatadora em termos de elevação dos leitores que nela se disponham a deixar enredar, enriquecedora no que diz respeito às temáticas e ao potencial de reflexão nelas envolvido e, finalmente, escrita com a mestria de quem sabe, por um lado, verter na narrativa a fluência do mundano e, por outro lado, associá-la à dignidade problemática que recusa o ocaso do pensamento, mesmo quando, ou principalmente por isso, a estação se pauta pelos agrestes ventos do inverno.
É sempre uma alegria quando alguém escreve um livro que me causa uma imediata vontade de oferecer exemplares àqueles que mais prezo. Ora é precisamente o caso deste livro de Manuel Ralha.

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