Grácio Editor

8,48 

Linhas poéticas (e-book)

978-989-8377-80-7 (e-book)
Share

No presente livro, a cronologia comanda ao mesmo tempo que assinala metamorfoses de vida que tudo obrigaram a recomeçar. Mas, no fluxo do tempo, ficaram registos com uma temporalidade menos efémera que a dos momentos sucedidos. E ficaram como a constância de uma voz atenta, cuja expressão artística irrompe em estado de urgência, persistindo e resistindo à voragem de uma mudança cuja aceleração nos tornou cada vez mais carentes de sentido.

Luisete Baptista, Na rota dos ecos do tempo perdido, Grácio Editor, 2016. Figueira da Foz, 17 de novembro de 2016.
Por Rui Grácio

«Na rota dos ecos do tempo perdido» é o título do último (e sétimo) livro de Luisete Baptista.
Ora, gostaria de começar estas breves palavras acerca da publicação detendo-me justamente no seu título.
Em primeiro lugar ele indica um exercício ou um tarefa, a saber, recuperar algo que parece ter ficado perdido nos confins da memória. “Na rota” significa precisamente um pôr-se a caminho num caminhar que é também uma procura, um ensaio, uma tentativa de se abeirar de algo. Mas o título diz-nos mais: trata-se de caminhar através do tempo — esse grande escultor, como diria Margerite Yourcenar — e de fazer essa viagem recorrendo à memória. Tempo, memória, sentido e discurso são pois quatro eixos para que o título deste livro remete. Mas vejamos isso mais de perto.
Encontrar um caminho, construir uma rota cujo mapeamento implica o recurso à memória, não é uma tarefa fácil. Ao contrário do que muitas vezes vemos nas séries televisivas em que as personagens parecem conseguir recuperar o passado na minúcia dos seu atos e na precisão dos acontecimentos, recuperando nos seus flashback, com nitidez, o tempo passado e os contextos espaciais da ação, os seres que vivem fora da tela, no mundo real, não têm essa facilidade.
Eles lidam com ecos, como nos sugere o título da presente obra, ecos de um tempo que perdeu a força da sua presença imediata mas que, todavia, persiste no feixe de um presente que é, simultaneamente, filho do passado e do futuro.
É neste contexto que surge a importância da narrativa, do contar ou do recontar. Mesmo as narrativas mais nítidas saem sempre de uma nublosa enigmática e mesmo as que pretendem ser mais factuais não deixam de ter na sua arquitetura a mão da imaginação. Porque, na realidade, recordar é também sempre imaginar, cruzar referências em mutação, aplicar novos enquadramentos e referências ao que, de repente, pode surgir noutra perspetiva.
Recordar e imaginar têm, por isso, uma inegável componente criativa e dão azo à arte. Neste caso, derem azo à arte literária, que se completa com a da pintura, já que também é da autora a pintura que figura na capa. Aliás, quem conhece a Luisete e a sua obra, sabe bem da sua paixão pelas artes — e especialmente pela escrita e pela pintura — e saberá também como ela as sabe aliar de um modo tão belo e sensível.
Esta é aliás uma boa deixa para fazer um parêntesis e referir-me ao outro livro que é também objeto desta sessão: Linhas Poéticas. Encontro entre duas artes — a poesia e a pintura.
Trata-se de um livro que tem similitudes com o Na rota dos ecos dos tempos perdidos e que talvez possamos ver como seu antecessor ou preparador, uma vez que nele já encontramos um percursos cronológico ancorado em três locais espacialmente significativos na vida da autora e também uma centralidade conferida à temática da temporalidade.
Mas, a propósito deste livro, não irei desvendar pormenores no que diz respeito à dança entre texto e imagens que nele encontramos. Antes vou retomar o prefácio que para ele escrevi e que o aborda com um olhar largo.
Assim, nestas Linhas Poéticas, mais do que o encontro da poesia e da pintura, pressentimos uma espécie de refúgio que salva e permanece, porque refractário à linha de um tempo, que corre inexoravelmente, e nos expõe às mais diversas situações.
Se a vida escorrega por entre as surpresas das contingências, a arte, essa, marca a nossa comparência num outro plano de vida.
Nele a materialidade das letras ou das cores convertem-se em testemunhos de uma envolvência que simultaneamente nos mostra como participantes mas, também, como espetadores e criadores atentos ao sublime.
São esses momentos, em que resguardamos a memória do fluxo do tempo e em que a poiesis convoca na nossa inteireza, que se nos afiguram como os momentos que salvam.
Nestas Linhas Poéticas, como disse anteriormente, a cronologia comanda, ao mesmo tempo que assinala metamorfoses de vida que tudo obrigaram a recomeçar.
Mas, no fluxo do tempo, ficaram registos com uma temporalidade menos efémera que a dos momentos sucedidos. E ficaram como a constância de uma voz atenta, cuja expressão artística irrompe em estado de urgência, persistindo e resistindo à voragem de uma mudança cuja aceleração nos tornou cada vez mais carentes de sentido.
Não é por isso estranho encontrarmos neste livro o conflito que necessariamente se gera quando o projeto e a esperança que fazem parte do sentido da vida vão progressivamente desaparecendo numa sociedade liquefeita, ou seja, incapaz de cultivar o sentido da permanência e edificar referências estruturantes.
A autora é, no entanto, fiel aos seus ideais, como se pode ver no poema Ser Professor: a unidade sem brechas nem costuras entre ser e estar é a coesão que, afinal, define a busca do ser humano e, essa, não a podemos negar sob o risco de perdermos a nossa própria humanidade. O resto é viagem e dela aqui se deixam alguns testemunhos de percurso.
]
Mas, voltemos ao Na roto dos ecos dos tempos perdidos e ao seu título. Curiosamente estabeleci uma conexão entre o título da presente obra e um poema por mim escrito para uma canção. O poema, que aqui me permito citar para de seguida voltar à caracterização do registo discursivo deste novo livro da Luisete, intitula-se «Conhece-te a ti mesmo» e reza assim:

Conhece-te a ti mesmo
Diz uma frase batida

Mas quando digo eu
Muitos outros eus
Aparecem
Na minha vida

Cada um de nós
Nunca está
Nunca está
No mesmo ponto

Somos ficções
jogadas
Na distância
Do encontro

E a vida corre sempre
Levando um avanço
Atrasados chegamos
Para fazer,
Fazer o balanço

Convence-nos
a imaginação
Que sabemos
quem somos

Mas lá no fundo
não sabemos
Quem seremos
nem quem fomos

Mutantes
e sorridentes
Falamos de coisas
Essenciais

Mas a essência
do que somos
Está sempre longe,
longe demais

E a vida corre sempre
Levando um avanço
Atrasados chegamos
Para fazer,
Fazer o balanço
Deste poema queria reter os seguintes versos, que me parecem ser uma boa definição da nossa condição humana:

Somos ficções
jogadas
Na distância
Do encontro

Ora, o livro da Luisete procura precisamente este encontro que tem de lidar com a distância, condição que faz com que a narrativa se mescle necessariamente com o ficcional. Ou seja, não sendo este livro um livro de ficção — na realidade ele diz respeito a percursos de vidas de pessoas concretas — nem por isso ele deixa de ter uma dimensão ficcional inerente à tarefa reconstrutiva daquilo que ecoa na memória, guardiã do tempo ou, como escreveu Fernando Pessoa, “consciência inserida no tempo”.
Por conseguinte, nesta tarefa reconstrutiva, a autora não se apaga porquanto ocupa o lugar de narradora: ler a sua escrita é também perceber a sua sensibilidade, as suas interrogações suspensas, o prisma do seu olhar, os seus júbilos e decepções, enfim, as suas vivências, sensações, acontecimentos e posicionamentos ao longo da corrente do tempo perante a qual se procura situar. Porque, com a sua narrativa, ela constrói uma rede de palavras para cerzir o sentido: este sentido é a rota, a narrativa é o seu percurso e o exercício de memória é o ponto de chegada da construção de uma identidade que, embora seja sempre esquiva, é existencialmente imprescindível afirmar, na medida em que necessitamos de um fio condutor que nos traga um certo apaziguamento.
As narrativas de vida — e retomo aqui as palavras que escrevi na contracapa deste livro — cumprem frequentemente uma função ordenadora e testemunhal. Mergulhando num passado que, como referi, habita a memória difusa e algo enigmática, a narrativa reconfigura trajetos, assinala pontos de continuidade e de rutura, recorda acontecimentos e reflete sobre o sentido da vida.
A distância temporal a partir da qual a narrativa é feita constitui, como salientei já, um desafio para quem escreve. É pois esse desafio que a autora partilha neste livro, num percurso de vida atribulado, no qual as relações entre os espaços geográficos e as vinculações dos afetos são várias vezes obrigadas ao exercício do recomeço, gerando sentimentos mistos que nem sempre são fáceis de conciliar.
Talvez este livro, que apresenta uma narrativa de vida distendida numa espaço temporal amplo e que contempla muitas experiências da mudança, da metamorfose e da necessidade de adaptação por parte da narradora, possa ter uma certa dimensão de reconciliação.
Mas, mesmo que não seja esse o caso, é pelo menos certa a afirmação de certos valores de vida filtrados pela sabedoria do tempo e por um espírito humanista.
Com efeito, suportada pela força dos laços afetivos e por um sentido de dignidade que prevalece como ideia orientadora, a vida dos ecos presentifica-se neste livro como o cumprimento de um destino que queremos controlar e ao qual, ao mesmo tempo, nos temos de sujeitar.
Penso, pois, ser este o sentido da ficcionalidade biográfica que, neste livro, se faz um romance — um romance autobiográfico — escrito com a mestria e a singeleza das pessoas de grande sensibilidade e amantes das artes como é o caso da Luisete.

Avaliações

Ainda não existem avaliações.

Apenas clientes com sessão iniciada que compraram este produto podem deixar opinião.