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Não percebo poesia

978-989-8377-44-9
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A PALAVRA QUE LÁ NÃO ESTÁ
Apresentação de “Não percebo poesia”, Ricardo Grácio
por Rui Pereira
Coimbra – 2.5.2013
 
Quero agradecer à Grácio Editores o convite para a apresentação deste pequeno-grande livro de Ricardo Grácio, “Não percebo poesia”. Queria agradecer, também, ao seu autor a generosidade do seu convite para o prólogo que me confiou. E agradecer ainda a todos os presentes.
Falarei pouco, não mais do que alguns tópicos soltos, acerca do que me parece ser um livro a muitos títulos surpreendente e consideravelmente inovador. Que toca no registo da simplicidade questões muito complexas, como as do sentido das coisas, as coisas e o que elas significam e que introduz com grande centralidade uma terceira figura por vezes menos considerada ao pensar-se questões deste tipo, a do “interpretante”.
Como percebemos as coisas e as palavras?
Partimos do que já sabemos, antes de tudo. Ou antes partimos do que julgamos saber. E isto faz uma grande diferença. Porque sabemos coisas muito diferentes.
Um exemplo do saber proverbial:
“Quem não arrisca, não petisca”. Ou então,
“Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”. Em que ficamos, pois?
Depende do contexto, claro. Ora o contexto é formado por muitas dimensões: as circunstâncias, os interesses, as disposições ou as indisponibilidades, as nossas ligações e desligações, os caminhos que tomamos, acrescido tudo isso daquilo que sabemos somado ao que ignoramos…
Isto é, no melhor dos casos, enquadramos o que há a perceber no que damos como já percebido. Enquadramos.
Dois velhos fragmentos do século XV português, ilustram bem o que pode entender-se por este objecto teórico e heurístico, o “enquadramento (framing):
“ O Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degradado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos; de cinco irmãs teve dezoito filhas; de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete amas teve vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas, da própria mãe teve dois filhos. Total: duzentos e noventa e nove, sendo duzentos e catorze do sexo feminino e oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em 53 mulheres”.
Porém,
“El rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos dezassete dias do mês de Março de 1487, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo e guardar no Real Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e demais papéis que formaram o processo” (Autos arquivados na Torre do Tombo, armário 5.0, maço 7)
Este é um livro de filosofia, na medida em que se ocupa do humano e da forma como o humano se torna humano, i.e., pelo entendimento, que é como diz, pelo discurso.
Sobre isto temos milénios de tradição. Para não recuarmos excessivamente, Locke, por exemplo, escreveu o seu Ensaio sobre o Entendimento Humano. Enquanto para Marx, a filosofia passara mais de dois mil anos a “interpretar o mundo”.
Esse passado deu à filosofia e ao filósofo o estatuto do sábio e a autoridade de quem não só havia entendido o mundo, como também a de quem detinha o entendimento sobre como entender o mundo.
O filósofo-rei ou o rei filósofo de Platão são uma condensação dessa figura, plasmada na ideia de autoridade. A autoridade de quem percebeu algo que os demais não entenderam. Ricardo Grácio fala criticamente acerca disso.
Aliás, como sublinha Sloterdijk, Hermann Schmitz, considerado o fundador da Nova Fenomenologia, pós-Husserl apontava nesta tradição a filosofia como discurso “de uma razão apontada ao poder!”
É aqui que começa a insinuar-se a palavra que Ricardo Grácio não escreve e que, no entanto, como num palimpsesto, percorre todo o texto: a palavra: política. E, pessoalmente, leio este livro como um livro político a muitos títulos.
Ao tomar a poesia como objeto do seu texto, como pretexto, o que o livro nos propõe é uma enorme operação de desconstrução de qualquer lógica de poder formulada pelo que entendemos por entendimento racional, ao dinamitá-la com a ideia da razão sensível.
Por outras palavras, a chave do entendimento está menos na resposta do que na pergunta. E a qualidade da resposta depende, fundamentalmente da qualidade da pergunta, como dizia Charles Wright Mills.
O texto de Ricardo Grácio desconstrói o essencialismo acabado. Imaginamos, depois de lê-lo, como fica a questão clássica que a escola tem por hábito colocar aos alunos quando lhes fala de poesia:
“Interpreta o que o poeta quis dizer…”.
Imaginemos isto com os surrealistas, ou apliquemos a pergunta a um trecho qualquer do Ulisses de Joyce e veremos com facilidade o absurdo garantido que tal procedimento afivela.
O duplo pressuposto daquela pergunta escolar é o seguinte:
1) Em primeiro lugar que o poeta quis dizer alguma coisa.
2) Em segundo lugar que a escola sabe o que o poeta quis dizer. Ou melhor, que é a escola que sabe o que o poeta quis dizer. E que, depois de frequentá-la, o aluno passa a saber também o que o poeta quis dizer, ainda que não note que aquilo que a escola lhe disse que acha, ela escola, que ele , aluno, fica a saber é o que o aquele poeta terá querido dizer com aquele poema. Ou seja, que a poesia é incompreensível fora dos limites estipulados para a sua interpretação autorizada.
E depois, os alunos dirão, naturalmente: não percebo nada de poesia.
Imaginemos agora que no lugar da palavra Poesia, colocamos no título do livro a palavra Democracia. Ou, pior um pouco, outra palavra que lá não está, a palavra Política…
Afirmam alguns de nós, que vivemos em democracia;
Afirmam outros de nós que não vivemos em democracia coisíssima nenhuma. Pelo meio há umas matizações menos interessantes e, porventura, mais interessadas.
Como podemos perceber isto? Como podemos discutir isto?
Devemos formar antes do mais um entendimento do que é a democracia, certamente. Não se afigura outro método. Mas a democracia convencionalmente escolarizada, tal como a poesia convencionalmente escolarizada, é uma fórmula que a Educação para os Media, que a Educação para a Cidadania, que muita da própria introdução da Filosofia para Crianças, faz passar de contrabando, inserindo-se numa educação geral para o regime, sobre a qual, educação, e sobre o qual, regime, muito haveria a dizer.
E precisaríamos ainda de indagar acerca da política. O que é a política? Pessoalmente, a melhor definição que ouvi sobre o que é a política veio de um jovem aluno de 14 anos de idade: “política é aquilo que fazemos a pensar naqueles que não conhecemos”.
E democracia? Como podemos responder à questão se não sabemos ainda como é possível garantir simultaneamente a fiscalização da promessa política e o controlo do seu incumprimento, assegurando ao mesmo tempo a governabilidade de comunidades humanas grandes ou muito grandes?
E sem saber isto, onde fica a autoridade da nossa sapiência sobre a democracia? Será que não percebemos nada de democracia?…
Constaremos, provavelmente, que todas as respostas que temos são exclusivas e excluentes daqueles que não têm as mesmas respostas que nós.
Devemos ser capazes de ir tentando perceber melhor o nosso problema. E constataremos provavelmente, findo esse percurso, que não há uma palavra autorizada e definitiva sobre o assunto.
Constataremos, provavelmente, que como nos diz Abraham Moles, não passamos de “seres de razão vacilante, mas com afirmações peremptórias”. Com todo o deplorável e o formidável que nisso possa haver.
Creio que é tudo isto que está brilhantemente exposto nesta curta carta, glosando Agostinho da Silva, de um jovem filósofo, Ricardo Grácio. Ou, mais adequadamente, foi pelos menos isso que julguei perceber em “Não percebo poesia”.

 

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