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Os Guardiães das Meias Luas

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978-989-96375-4-2 ,
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Texto integral da apresentação do livro por Rui Alexandre Grácio

Muito boa tarde a todos.

Vou aproveitar este momento para, mais do que apresentar apenas o livro que figura no programa, fazer uma referência às várias de Ricardo Grácio. Penso que a sua obra é merecedora dessa visão de conjunto.
Ricardo Grácio tem vindo a publicar desde 2010.
O seu primeiro livro, intitula-se Os guardiães das meias-luas e, embora tenha um carácter semi-ficcional, também se pode dizer que é um livro de prosa poética. De uma intensa prosa poética, diga-se.
Já nesse livro, o autor revela algo que ficará patente no percurso que depois foi trilhando, a saber, o fascínio pela poiseis criativa, para a qual mobiliza todos os meios que pode para potenciar a sua produtividade.
No livro referido acima, à autoria do texto, Ricardo Grácio junta a autoria das fotos que vão pontuando o livro e desenhando a envolvente do mundo mágico de uma vila onde ainda persiste a artesania da pesca.
Poderia dar nome a essa vila, de muitos certamente conhecida, mas isso não é relevante. Porque, com efeito, o importante é a vila recriada e inventada textualmente, tal como ela surge ao leitor pela escrita e pelas fotografias de Ricardo Grácio.
Ora, ela surge com uma intensidade que diria avassaladora, nela se cruzando a rudeza de um trabalho arriscado e os sentimentos mais genuínos e nobres.
Os guardiães são os pescadores que mantêm viva a arte chávena e que dela procuram retirar parte do seu sustento.
As meias-luas são as pequenas embarcações em que eles se aventuram, embarcações que têm nomes como “Pouca sorte” ou “Resta esperança”.
O quadro geral da sua atividade é pintada de saber antigo, de apego às redes de pesca, de camaradagem e de uma circunspeção virada para as escuta dos sinais.
Como se pode ler a dado passo:

“São poucos. O seu ser é todo movimento. O seu olhar, vigilância e leitura. O seu pensar, aconchego. Ao longo dos dias são vistos nas praias, junto às meias-luas. Percorrem inúmeras vezes as mesmas redes, à procura de uma falha, espreitando uma oportunidade para cozer, para emendar, para curar”.

No texto que corre, encontramos uma estima e um apreço superlativo pelo modo de vida daqueles homens, envoltos numa moldura de sentimentos nobres e genuínos, sem outros artifícios que os que são criados pela força e pela habilidade dos seus corpos e pelo coragem e dedicação do seu caráter.
A faina tem os seus riscos. E muitas vezes algum de entre aqueles que se fazem ao mar nas pequenas meias-luas, não volta. Mas ainda assim, a grandeza persiste, como está escrito na parte final do primeiro e mais extenso dos dois textos que compõem este livro.
Ouçamos essas palavras (p. 41):

Uma pessoa chora.
Há uma mulher que chora na praia, que chora junto ao mar.
Chora por um homem.
Chora pelo seu homem, que não voltou. Que não voltou do mar.
Chora com a perda. Chora com um peso nas suas costas. Chora com o peso da memória de uma convicção que um dia venceu o medo e fez do homem, mar.
Chora com a possibilidade que agora tem de a fazer perdurar e de, com ela, pintar novos mundos.
É grande, este chorar.

O segundo texto deste livro, que é breve, tem como título “Rede de mãos” e está é uma boa oportunidades para o ouvirmos (leitura pp. 45-47).

Depois deste primeiro livro, Ricardo Grácio escreveu dois livros de poesia, O livro das pedras, em 2012 e Ilha, em 2013.
Penso que duas das temáticas marcantes neste livro são o confronto com a inexorabilidade do tempo e o desencanto com o humano.
As pedras, ao contrário das vidas humanas, são coisas de longa duração. E a sua natureza mineral não as faz sentir a agonia da finitude, finitude que, aos homens traz as interrogações sobre o sentido de ser e a obrigatoriedade de lidar com a perda.
Muitos dos poemas deste livro das pedras gravitam em torno da tricotomia eternidade-movimento-morte.
Mas nele está também presente à dimensão dos afetos como reduto do infinito no finito, como o aconchego que permite esquecer e aceder, por momentos, ao encanto do mundo.
Entre momentos mais encantados e registos de desencantamento, este livro trilha a rota da inquietude existencial, insistindo num equilíbrio que o cansaço parece tornar quase impossível. É que, como explica o autor na página 31 do livro, e cito, “O cérebro / É um músculo / Tanto mais que às vezes / Não pode mais.”
A exasperação com a fragmentação do mundo, com a aceleração que nada deixa permanecer, os efeitos demenciais que isso repercute na maneira das pessoas viverem e se relacionarem e o fechamento perante os desafios das infinitas possibilidades, são também um pano de fundo temático deste livro.
Vejam-se, a este respeito, os poemas das páginas 33, 35 e 51.
(Leitura)
O segundo livro de poesia de Ricardo Grácio, foi publicado, como já referi anteriormente, em 2013 e intitula-se Ilha.
Este livro continua a debruçar-se sobre temas que apareciam no livro anterior. Mas, neste Ilha, os poemas organizam-se em cinco sessões, respetivamente intituladas:
– Os nascimentos que se sucedem
– Núcleo
– De sementeira e movimento
– A imaginação dos dias claros
– Tempo em jogo.
Sem querer falar propriamente do que poderão significar os títulos das diferentes partes que compõem o livro, gostaria apenas de realçar que aqui o nascimento é visto como um naufrágio — um naufrágio de chegada — e a existência é sentida como uma ilha.
Mas, mais do que isso, a sequência das partes que compõem este livro parecem traçar o itinerário do ciclo da vida de onde o bailado entre finitude e infinitude nunca se ausenta.
Se é certo que nos momentos da sementeira e de movimento a intensidade e o fulgor da criação abeiram o infinito, já a imaginação dos dias claros traz já o distanciamento desapegado da sabedoria e o tempo em jogo assinala a nossa finitude.
Terminemos esta breve apresentação deste livro, ouvindo três poemas de cada uma destas secções (Ruminação vulcânica, p. 31; Mantra, p. 54; Finitude, p. 74).
(Leitura)
Resta-me, finalmente, falar do último livro de Ricardo Grácio, intitulado “Não percebo poesia” – anotações preparatórias para uma viagem de exploração e mapeamento de um continente desconhecido.
O contexto da elaboração deste livro é explicitado no início do livro numa “Nota explicativa do autor”.
Como a poderão ler, limitar-me-ei apenas a dizer que ele foi escrito para um aluno de música do Ricardo Grácio que, depois de tentar ler os seus livros, lhe confessou, desanimado “Não percebo poesia”. Mas vamos ao livro e ao que julguei perceber em “Não percebo poesia”: só quando dispensamos os hermeneutas-mor e a apropriação e fixação institucional do sentido e dos significados, só quando nos libertamos do medo de criarmos uma coautoria que não prende mas inscreve, potencia e liberta, só aí os passos serão nossos e só aí apropriamos a liberdade de existir.
De outro modo, o atavismo tolherá os nossos movimentos, a confiança no pensamento e nos seus poderes criadores será atrofiada e, no canto esvaziado de coragem, a vida ficará para sempre refém da menoridade.
Caso para dizer, com Kant: ousa pensar: tem coragem de te servir do teu próprio entendimento (a que eu acrescentaria) da tua própria sensibilidade e da tua própria imaginação, porque assim serás caminhante que, sem as máscaras do poder, das falas autorizadas e dos pensamentos legítimos, é afinal a condição do qualquer humano.
Queria finalizar, agradecendo a presença de todos e lembrando-vos que, para além de escrita, da fotografia e do ensino, a mais funda paixão de Ricardo Grácio é a música. (E com esta deixa aproveito para passar à apresentação do CD musical, tal como está previsto na programa desta Feira Cultural de Coimbra).
Ele tem liderado um projeto ímpar entre nós, chamado “há música na aldeia”, projeto do qual ele talvez vos possa falar um pouco.
No entanto, não é só o ensino e a partilha da música que o motiva. Ricardo Grácio é também um compositor e recentemente gravou o seu primeiro CD intitulado “Coisas com tempo”.
Eis um texto que ele escreveu sobre os seus trabalhos:

« De como ir colhendo um universo
Imaginemos que a nossa experiência não nos remete para o universo de como as coisas “na realidade” são, mas antes para o desafio do perguntar. Que cada marco das nossas visões, percepções e memórias são não o espaço da identificação e reconhecimento do já conhecido, mas antes da questão do modo como aparecem assim. Imaginemos que cada construção, cada ponto no mapa do mundo, cada núcleo do que tomamos como relevante se presta não à afirmação de estatutos associados a um mostrar-se sabedor de, mas antes ao espanto de que as coisas sejam e tenham a sua história contingente. Imaginemos que não vivemos encapsulados numa corrente de actualidade construída por temas e variáveis cuja escolha nos escapa totalmente. Imaginemos que somos capazes de imaginar um mundo povoado ainda por uma humanidade titubeante que, lentamente, lance a lance, se vai espraiando pelo espaço de um mundo que aprende a chamar seu e a tornar familiar. Que cada um desses lances obriga ao esforço de um imaginar planeante e experimental, no qual se desenham diversas estratégias de instalação e manutenção do humano na existência. Imaginemos, ainda, que não tomamos o mundo e a nossa presença nele por coisa garantida à luz de construções nossas que, com o tempo, cresceram por cima de nós, quase como que fazendo parte do que chamamos realidade.
Se aceitarmos o desafio e se a ele nos dedicarmos com uma perseverança quase ritual, imaginemos que o mundo se abre e o espaço se multiplica. Imaginemos que aquilo que assim sentimos tem alguma coisa a haver com a liberdade. E que essa liberdade é também um espaço para encontrar e convocar outros imaginadores. Imaginemos que esse encontro enraíza quem nele se integra no prazer de uma proximidade. Que essa proximidade é um novo organismo multi-celular que, pelas suas características emergentes, redescobre a possibilidade de reaprender o mundo.
Imaginemos agora que lhe chamamos aldeia e que, pelas suas características, aproxima os humanos, mas não consegue esquecer a força vital de tudo o que fora, em redor e no seu interior, se ritma ao compasso de uma lei que não é sua invenção. Haverá, aí, espaço para guardar o desconhecimento e o espanto, espaço para dizer, por exemplo “Não percebo poesia” ou para perceber que as imagens com que definimos o real são quase sempre emprestadas de imagens de “realidades” anteriormente imaginadas, escritas num qualquer “Livro das pedras”.
Haverá, talvez, também tempo para que o tempo venha de fora e não apenas do cronométrico medidor de regularidades, tornando as próprias coisas em portadores de tempo e não apenas coisas no tempo, em suma, “Coisas com tempo”. No tempo e espaço assim abertos, será possível desenhar e guardar memória dos traços das estratégias e histórias dos lances que vamos arriscando. Talvez então fosse possível contemplar as figuras formadas por tais traços que definem a modalidade da nossa proximidade e, das suas imagens, deixar testemunho, ser guardador, guardião de imagens de nós no mundo, ser um dos “Guardiães das meias-luas”. Que novos mundos se descubram/inventem fora e dentro de nós, mais ou menos solitários ou povoados, qual descobridores de uma nova “Ilha” e que neles ressoe qualquer coisa com que nos repercebemos.
Se no fim houver energia, talvez a celebração brote dos humanos como a água fresca da pedra-mãe de uma nascente, desça ao terreiro e alguém diga a outro alguém: “Há Música na Aldeia”.
A relevância de tudo isto é apreendida na justa medida da sua irrelevância ou, posto de outro modo, naturalidade: não há nada de extra-ordinário naquilo que nasce nesta história agora contada, não há nenhum estatuto fora do comum ou inusual nas peças que espanto e imaginação vão construindo à medida que se alimentam do caminho que percorrem. Talvez o grau de excepção ou extra-comum (que soa também, muitas vezes, a extra-comunitário, fora da comunidade) seja, mais do que uma característica da criação ou daquilo a que chamamos artes, sinal do nosso distanciamento do mundo que nos habituámos a carregar como uma fatalidade, distanciamento desse núcleo central onde o mundo mesmo se dá e é, mais propriamente, aquilo que é: a dança infinita do mostrar-se e ocultar-se, entre o ininteligível ou nunca imaginado e as imagens que guardamos, do nascer e do desaparecer constante de tudo aquilo que, se formos capazes de imaginar, faria de nós os felizardos contempladores de uma janela do mais maravilhoso dos espectáculos.
Imaginemos, então que ver é imaginar e que imaginar é rodar, dedilhar, acarinhar imagens nas mãos, no corpo, no pensamento, que tudo o que nos é dado experimentar do mundo implica sentidos como os sentidos do carinho, do manusear e do cuidar.
É esta história que vou tentando e — na verdade a única — que me interessa contar».

Propunha que ouvíssemos primeiro o que o Ricardo Grácio nos tem a dizer neste momento especial de apresentação dos seus trabalhos multifacetados, que nos falasse um pouco dos seus projetos musicais e que, depois disso, que partilhasse connosco algumas músicas deste seu “Coisas com tempo”.

Não queria finalizar sem fazer agradecimentos a todos os que participaram neste sessão, bem como a presença daqueles que a ela compareceram.

Coimbra, 7 de Junho de 2015. Feira Cultural de Coimbra, 18 horas.

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