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Pensar o Mundo

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Pensar o mundo reúne e apresenta, em sequência cronológica, os vinte livros publicados por Manuel Maria Carrilho no decurso das últimas três décadas (1982-2012). Trata-se de uma obra marcada pela abordagem dos grandes temas e problemas da contemporaneidade, fundamental no panorama do pensamento e da cultura portuguesas.

 

Texto integral da apresentação do livro por Rui Alexandre Grácio

Pensar o Mundo
de Manuel Maria Carrilho
Coimbra, Quinta das Lágrimas, 9 de Novembro de 2012

O meu nome é Rui Grácio, e na qualidade de editor da obra que hoje nos reúne aqui, «Pensar o Mundo» do Professor Manuel Maria Carrilho, queria agradecer o acolhimento que a administração do Hotel Quinta das Lágrimas nos proporcionou para aqui procedermos à apresentação da obra e à Márcia Cardoso pela sua colaboração na organização deste evento.
Queria também agradecer ao Professor Miguel Fonseca e ao Clube MBA da Faculdade de Economia que, tendo convidado o Professor Manuel Maria Carrilho para proferir uma palestra no âmbito do ciclo de conferências subordinado ao tema «Há uma luz ao fundo do túnel?», que também hoje aqui ocorrerá pelas 21h30, achou oportuno associar estes dois eventos.
Queria finalmente, agradecer a todos os presentes a vossa comparência nesta sessão.
Para além de estar aqui no papel de editor, cabe-me também hoje a honrosa e desafiante tarefa de apresentar a obra.
Honrosa porque se trata de um autor e de um pensador que eu tenho seguido atentamente ao longo de muitos anos e que considero ser uma figura de primeiro plano no panorama do pensamento contemporâneo e da cultura portuguesa.
Desafiante porque, querendo eu centrar-me na obra, não se torna fácil sintetizar a riqueza do seu conteúdo e ainda menos fazê-lo num registo comunicacional que se pretende acessível e estimulante.
De facto, apresentar uma obra como Pensar o Mundo — onde estão reunidos vinte livros publicados num período de trinta anos e que agora foram reunidos em dois volumes, cada um dividido em duas partes — impõe necessariamente uma visão de percurso.
Um percurso no qual a dimensão contingencial da vida do autor — no qual se incluem a sua formação, as suas opções, as suas iniciativas e intervenções e as suas funções profissionais — cruza com a dimensão coerencial da sua obra.
Sobre o percurso que o tornou conhecido como filósofo, professor universitário e depois como político no ativo — ministro da cultura no governo socialista de António Guterres, deputado, candidato à Câmara Municipal de Lisboa e mais tarde embaixador de Portugal junto da UNESCO — não me irei aqui propriamente pronunciar.
Considero que tudo isso é não apenas do domínio público como faz parte da dimensão contingencial a que me referi anteriormente. Terá naturalmente a sua importância na narrativa do percurso, mas não põe em destaque aquilo que, quanto a mim, se torna possível evidenciar com a presente obra, e que é dimensão de coerência intelectual do seu pensamento e do seu trabalho de escrita.
E a que é que me estou a referir quando falo de «dimensão coerencial»?
Para que não haja equívocos, começarei por dizer que tal não significa que haja na sua obra algo parecido com uma «filosofia sistemática» ou com uma qualquer teoria geral.
Significa, sim, que a ela é prolixa em intuições estimulantes e inspiradoras que, ao mesmo tempo que avançam hipóteses e abrem rotas alternativas para tematizar problemas, se pautam também por um poder apelativo que enriquece, liberta e contagia a inteligência dos leitores.
É aliás notável e manifesto o esforço de depuração que encontramos no seu modo de tematizar os assuntos e de formular os problemas, com uma opção nítida pela circunscrição simultaneamente incisiva, simples, acessível e bem doseada em detrimento da linguagem cifrada dos especialistas e de aprofundamentos eruditos que se perdem em minudências.
A dimensão coerencial a que me refiro tem sobretudo a ver com uma atitude que consiste, por um lado, em confrontar crítica e interventivamente as situações com que as contingências da vida o fazem conviver e, por outro, equacioná-las e compreendê-las em termos problemáticos, tentando encontrar as respostas mais apropriadas e estrategicamente oportunas para essa problematicidade.
Esta atitude é uma constante no seu percurso e penso que poderíamos ler a sua obra seguindo esse fio condutor: se, por um lado, os seus livros estão sempre relacionados com a contingência de situações específicas que lhe instam o pensamento, por outro, nunca encontramos nas suas ideias e problematizações o deleite narcísico de quem gosta de contemplar o pensamento como um fim em si mesmo. Aquilo com que, ao invés, nos deparamos é com o desafio — direi mesmo, com o trabalho — de estar à altura de construir ideias capazes não só de repercutirem as exigências da ação no pensamento como também de inscrever essas ideias num fluxo de efeitos práticos.
Manuel Maria Carrilho sinaliza bem esta dimensão quando, para identificar o seu registo, apropria a máxima bergsoniana

«age como homem de pensamento e pensa como homem de ação» (Vol I, p. 851).

Do mesmo modo, também a afirmação segundo a qual

«em qualquer mudança, a metamorfose que a suscita e caracteriza é mais interessante do que a crise que a revela e expõe» (Vol. II, 687)

é igualmente reveladora da sua preferência por uma concepção que recusa desarticular o pensamento e a ação, como geralmente acontece quer com as visões jubilatórias, em que a exaltação da confiança acaba por roçar a cegueira, quer com as visões catastrofistas, em que a hipérbole do negativismo enfraquece o discernimento.
Pelo contrário, Manuel Maria Carrilho prefere a compreensão do registo tensional dos efeitos e das consequências a partir do qual procura abordar, na sua complexidade, as transformações que afetam as nossas vidas. E a sua obra — por entre as contingências do percurso — é um exemplo coerente dessa persistência em que a análise, a procura de respostas e o sentido de comunidade se irmanam com um sentido de responsabilidade e com um forte espírito de serviço público.
Diria, utilizando uma expressão do autor, que o estímulo que preside ao seu trabalho de escrita, e ao desafio de compreensão que lhe é inerente, se consubstancia na expressão-desafio: «alargamento do pensável».
Este «alargamento do pensável» traduz uma aversão aos conformismos de toda a espécie, uma paixão pelos poderes transformadores do pensamento, uma desinteresse pelos discursos inconsequentes e, finalmente, um fascínio pelos desafios colocados à mobilidade criadora da inteligência na sua articulação com as situações contextualmente dimensionadas. É que, afirma com simplicidade Manuel Maria Carrilho,

«a filosofia é uma atividade de expressão de problemas» (Vol. I, 405)

Mais do que um filósofo — palavra com conotações perigosas, quer pela tradição essencialista para que remete e na qual Manuel Maria Carrilho não se inscreve, quer pela suposta especificidade que evoca, mas que o nosso autor vê de uma forma muito mais ampla, indisciplinar e plural — , mais do que filósofo, dizia, parece-me preferível designar o autor de Pensar o Mundo — e até a este nível o título é sugestivo — como um livre pensador.
O livre pensador não tem geralmente relações pacíficas com os aparelhos institucionais — sejam eles de que natureza forem — que tendem a anular os processos de autocrítica e a afirmar o seu poder e importância através de posições eivadas de dogmatismo que fazem um certo apelo à subserviência.
O livre pensador tem uma certo instinto nómada e não vê os limites de uma forma rígida, antes os percebe como fronteiras frágeis e como zonas de metamorfose.
A plasticidade e não a rigidez, o fluxo e não o fixo, a irrequietude e não o permanente, a alteridade e não a identidade, o inventável e não o determinado, o questionável e não o inquestionado, o contingente e não o necessário, todos estes são registos afins ao livre pensador.
Mas faz parte também do ethos do livre pensador uma certa solidão e uma certa obstinação: a solidão da travessia que ele enfrenta por conta própria e a obstinação de encontrar as suas próprias palavras, formulações e caminhos, resistindo aos discursos ventríloquos que tendem a expropriar a voz própria.
Dito isto, posso agora então adiantar que a presente obra nos põe perante um percurso extremamente cioso do trabalho e do desafio da construção de um pensamento que se vai munindo das ferramentas conceptuais que lhe parecem mais fecundas e que cedo se centrou no ponto em que o pensamento e a vida, a teoria e a prática, a conceptualidade e o pragmatismo, inevitavelmente se cruzam: refiro-me aos usos da linguagem.
Se esta centralidade conferida aos usos da linguagem não é explicitamente tematizada nos dois primeiros livros de Pensar o Mundo, onde a noção de problema é central, ela desponta no entanto no terceiro, «Elogio da Modernidade», onde a tradição europeia é confrontada com a tradição anglo-saxónica e, especificamente, com o pragmatismo.
Escreve Manuel Maria Carrilho nesse livro, num texto sobre Rorty,

«a diferença instaura-se com a orientação que valoriza, de um modo inédito, a comunicação e a prática: por isso a clarificação das nossas ideias passa, por um lado, pela avaliação do seu sentido do ponto de vista da efetiva comunicação que, ao nível da linguagem, se institui; e, por outro, ela é solidária com a sua aplicação, isto é, com as suas consequências práticas» (Vol I., p. 263).

Neste caminho de valorização dos usos da linguagem, para além do pragmatismo, Manuel Maria Carrilho encontrará também a argumentação e a tradição retórica, que chegará após um conjunto de estudos publicados no terceiro livro do primeiro volume, «Itinerários da Racionalidade».
É que neste livro o mito da unidade da razão é desfeito em detrimento duma visão plural da racionalidade consubstanciada na ideia, que aí aparece pela primeira vez, de «jogos de racionalidade». E, sobretudo, é um livro que conduz a uma concepção da ciência sem privilégios, ou seja, que questiona a hegemonia do conhecimento científico, inserindo-o no contexto mais alargada das práticas discursivas e dos regimes do discurso.

Dito de outra maneira, podemos situar aqui a viragem de uma registo epistemológico que durante muito anos foi central nas reflexões de Manuel Maria Carrilho para uma registo argumentativo-retórico, viragem patente justamente no quarto livro de Pensar o Mundo, intitulado «Verdade, suspeita e argumentação», que fecha a primeira parte do primeiro volume.
Digamos que esse livro coloca em questão a ideia de verdade, mostrando a pluralidade das concepções e dos critérios com que ela pode ser considerada, evidenciando a suspeita de que ela se torna alvo quando em vez de verdade a encaramos em termos de valor (o «valor verdade»), fazendo a ponte entre verdade e instituição e, por fim, tornando a ideia de verdade indissociável dos usos retórico-argumentativos da linguagem.
Se quiséssemos sintetizar numa só frase a ponto de chegada deste livro, mas que se constituirá como um decidido ponto de partida, poderíamos citar a seguinte frase do sociólogo polaco Zygmunt Bauman:

«a verdade é um conceito essencialmente antagonístico».

Ou seja, para o dizer de uma forma simplificada, a verdade está sujeita ao jogo dos prós e dos contras e decide-se socialmente nesse jogo. Ora o discurso em que se articulam os prós e os contras, onde se esgrimem argumentos, onde se procuram salientar certas coisas e filtrar outras na expectativa de persuadir é, por excelência, o domínio da retórica e a retórica, por sua vez, é indissociável da política, local essencial onde se tem de fazer escolhas.
Por isso escreve Manuel Maria Carrilho que, ao invés da política ser o domínio da verdade ou da competência, ela é antes o campo

«da oposição de interesses e o da alternativa de valores. É, portanto, um espaço de conflito e de opções, sempre mediado pela palavra» (Vol. II, 11).

Eis pois, cumprido aquilo a que poderia chamar o primeiro ciclo, essencialmente desconstrutivo, do percurso de Manuel Maria Carrilho. Ele passou pelo afastamento intelectual de uma universidade em que não reconheceu a potência filosófica

(«o choque foi chegar à Faculdade de Letras de Lisboa e encontrar uma licenciatura em que a filosofia acabava no século XIX e cheirava a mofo: o combate contra esse carunchoso “status quo” tornou-se naturalmente para mim um imperativo» (entrevista a Miguel Real, JL),

pelo trilhar de um percurso aberto às influências das movimentações da filosofia contemporânea (que aliás contribuiu para introduzir nos meios editoriais portugueses), pela eleição da articulação entre interrogatividade e problema, pensamento e discurso, teoria e ação e, finalmente, pela deslocamento das questões epistemológicas para o âmbito mais alargado da retórica.
A esta fase desconstrutiva seguiu-se uma fase extremamente pujante e produtiva que se estende de 1994 a 1999 e que constitui a segunda parte da primeiro volume de Pensar o Mundo.
Porque não quero ser excessivamente longo, procurarei sintetizar três pontos que considero essenciais nesta etapa do percurso: por um lado, a consolidação da retórica como campo privilegiado para perceber e lidar em termos práticos com o tecido conflitual que atravessa a vida social, por outro, a explanação do perspectivismo, ou de um neoperspectivismo, como a posição que permite a libertação dos impasses filosóficos da modernidade e, finalmente, a confluência destas concepções numa visão alargada da cultura como horizonte determinante na construção da vida dos homens e umbilicalmente ligada à política.
Explicitando também sinteticamente estes pontos, direi que a retórica surge como algo que é indissociável dos usos da linguagem, que na linguagem lidamos sempre com versões e interpretações conflituais, ou seja, estamos sempre condicionados por determinadas perspectivas ou modos de ver, recusando por isso o perspectivismo a existência de um qualquer modo de ver totalizador, equivalente a uma espécie de olhar de Deus, e, por conseguinte, valorizando a dimensão tensional como a realidade concreta que atravessa a vida dos homens. Desta concepção, que conduz a realçar a importância das opções, o pensamento reencontra a política como sua dimensão constitutiva.
Este cruzamento, do pensamento e da política, do perspectivismo e da ação, adquiriu uma forma concreta com a assunção da participação ativa na política quando Manuel Maria Carrilho aceitou ser ministro da cultura. O livro que encerra o primeiro volume «Hipóteses de cultura» demonstra como o seu autor procurou levar à prática a máxima bergsoniana acima referida.
Passemos agora ao segundo volume de «Pensar o Mundo», que deve de novo ser encarado quer a partir da dimensão contingencial, quer da dimensão coerencial a que aludi anteriormente.
Para defender esta interpretação, e uma vez que por vezes se tem a tendência para identificar um tanto depreciativamente o conteúdo deste segundo volume com «os textos das crónicas» que o autor regularmente publicou na imprensa escrita, importa citar a própria colocação do autor perante as ditas crónicas.
Escreve ele na Nota Introdutória a «Crónicas Intempestivas»:

«Escrever intempestivamente é apostar que é possível ligar o fundo das correntes com a forma dos acontecimentos. Sorrir das agendas, ignorar as caixas e os diretos, condescender com os rumores. E, pelo contrário, cultivar a memória, decifrar a permanente e prodigiosa invenção de factos de que cada vez mais é feita a comunicação, perscrutar o horizonte dos murmúrios e das expectativas, procurar os sinais do imprevisível e aguardar as rotas da contingência.
O que a política (ainda) conserva de fascinante é, no fundo, simples, e passa por aqui, pois trata-se do que ela mais profundamente partilha com a vida: a enorme margem que tantas coisas têm de poderem, de facto, vir a ser outra coisa — mudadas, transformadas, reinventadas. Por isso, hoje o grande combate é entre, por um lado, o conformismo que promove em contínuo — na escola como nos partidos, nas empresas como nos media — padrões de mediocridade e mensagens de resignação e, por outro lado, o inconformismo dos que acreditam que é possível algo diferente, e melhor. (Vol. II, p. 159).

É certo que os livros que compõem o segundo volume são livros escritos após o fim do seu desempenho como ministro da cultura. Uma passagem por funções governativas e a participação num aparelho partidário deixam as suas marcas e têm os seus efeitos.
A primeira parte do segundo volume, apesar de nunca se perderem os enquadramentos filosóficos que habitam o espírito dos livres pensadores, é composta por livros indissociavelmente mais ligados à preocupação com o estado da nação e com os quadros da política portuguesa.
Se são livros que combinam questões de fundo com questões mais circunstanciais, eles vão todavia apontando para a emergência de uma nova metamorfose da forma de pensar, desta vez suscitada pelas aceleradas transformações provocadas pelo processo de globalização e pelos novos e complexos problemas que esta impõe. A articulação entre o local e o global passou a ser imperativa para o pensamento contemporâneo.
Os livros que compõem a quarta parte do segundo volume de Pensar o Mundo assinalam esse trânsito para uma postura mais distanciada («a boa distância»), em que a intensificação da atividade intelectual se vai libertando da pressão do imediato do fazer político e transitando para a busca da identificação dos grandes problemas — mas a expressão mais adequada é agora dos grandes paradoxos — com que hoje nos deparamos e confrontamos e para a correlativa procura de conceitos que os permitem elucidar, evidenciar e pensar.

Sem poder ser exaustivo, queria contudo indicar alguns dos temas abordados nos livros do segundo volume:
— a identificação do mal português com o analfabetismo e com a falta de qualificação;
— o fenómeno da despassionalização da política;
— a sociedade da informação no seu cruzamento com a tecnocracia e com o economicismo;
— os impasses da política portuguesa;
— a ilusão do deslumbramento tecnológico;
— o processo de indigenação a que a cultura foi votada e suas consequências;
— os impasses do federalismo europeu;
— a mercantilização generalizada e o financismo tentacular;
— os modelos de desenvolvimento baseados no crédito;
— o papel e as metamorfoses da esquerda no mundo atual;
— o significado do poder dos media na transformação do jogo político, ou «quando o quarto poder se torna primeiro» (Vol. II, p. 411);
— a decadência do Estado-nação, a privatização do indivíduo e os avanços do ultraliberalismo;
— as metamorfoses do poder na época contemporânea;
— a desvitalização da democracia e os processos que a ela estão ligados;
— o significado da atual persistência da vida como crise.

Entre alguns dos conceitos avançados em torno destas temáticas, vale a pena citar o conceito de «endividualismo» cunhado para nomear a teia em que a afirmação do individualismo se teceu através do endividamento, da constituição do indivíduo como dívida que, ao mesmo tempo que o autonomiza, o torna mais vulnerável e impotente para alterar a sua situação.
Escreve, a este propósito, Manuel Maria Carrilho:

«o endividualismo de que falo é o resultado da última metamorfose do indivíduo moderno, do processo da sua afirmação e expansão ilimitadas. É o produto da sua profunda cumplicidade com o paradigma do ilimitado que marcou todo o século passado, sobretudo a segunda metade, garantindo a todos uma energia inesgotável, um consumo interminável e um crédito sem fim, num abismo de ilusões em que todos nos precipitámos.
Ele aparece hoje como o apogeu jubilatório do indivíduo que se realiza pelo crédito, isto é, pela dívida. Ele tornou-se, no mundo de hoje, no pilar mais generalizado — e talvez no mais resistente! — deste paradigma em crise. Ele decorre da afirmação sem limites dos direitos dos indivíduos, da progressiva identificação do direito, de todo o direito, com a proteção da esfera do privado, e da rasura sem precedentes das referências a valores ou convicções de ordem coletiva» (Vol. II, p. 692).

As reflexões mais alargadas que encontramos nesta segunda parte do volume II — onde não se deixa de propor a necessidade de uma nova república — vão cada vez mais no sentido de proceder a equações largas que englobam as metamorfoses culturais, os efeitos do ultraliberalismo, o papel da esquerda na atual conjuntura e, entre muito mais temas, uma interrogação de fundo sobre a democracia.
Aliás, a agenda dos grandes temas que hoje urge pensar são bem sintetizados no «Posfácio», numa sequência de perguntas que não quero deixar de citar:

«como revitalizar a democracia, ultrapassando o generalizado paradoxo de uma liberdade individual que cresce, enquanto a capacidade coletiva diminui? Como libertar a sociedade do clientelismo partidário que a consome? Como ultrapassar as ilusões do socialismo da dívida e do consumo? Como reforçar o valor do trabalho e equacionar o tema da sua duração, como criar emprego e incentivar a produção? Como repensar a fiscalidade no quadro da globalização? Como libertar o ensino do garrote empresarial? Como contrariar o crime, em curso, contra as humanidades?
Ou ainda: como transformar o Estado-providência num Estado-estratega? Quais os novos parâmetros do contrato social para o século XXI? Como «civilizar» a finança? Como reformar a justiça, e contrariar o permanente crescimento das desigualdades? Como deixar de endeusar o livre-câmbio e de diabolizar o protecionismo? Como acabar com a retórica balofa da língua, colocando a cultura e a criação no centro de uma inovadora capacidade de projeção nacional? Como robustecer o papel do mar e dos recursos naturais, transformando a nossa periferia numa verdadeira centralidade estratégica? Como legitimar democraticamente uma (eventual) solução federal europeia? Como fazer das novas tecnologias instrumentos, não de sujeição, mas de emancipação individual e de afirmação coletiva? Como repensar a gratuidade?» (Vol. 688-689).

Estas interrogações convergem para uma reflexão de fundo sobre a democracia que, diz o autor, está na calha dos próximos trabalhos a publicar, eventualmente sob a forma de uma trilogia: Metamorfoses da Democracia, Da Esquerda, Da Cultura.

É que, é bom lembrar, Pensar o Mundo não é uma reunião das obras completas. É uma compilação de um trabalho em progresso que comporta vários ciclos.
Impunha-se publicá-la para fechar um ciclo e abrir outro e para se poder fazer uma leitura em termos do imenso percurso já feito e que com justiça se deve enquadrar na primeira linha do pensamento e da cultura portuguesa.
Impunha-se, finalmente, para, à luz do lastro do seu já efetivo legado, homenagear o autor e interesseiramente incentivá-lo a continuar a partilhar esse nutritivo alimento da inteligência que a sua escrita e o seu pensamento problematizante sabe, de uma forma única, destilar para um mundo onde, à falta de ideias consistentes e bem alicerçadas, reina a desorientação.
É que hoje o grande deficit reside, precisamente, na crescente escassez desta capacidade de pensar o mundo.

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